“Fora da escola não pode! Na escola sem aprender também não pode!”. É assim que a oficial de educação do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), Erondina Barbosa da Silva, inicia a conversa sobre a estratégia “Trajetórias de Sucesso Escolar”, iniciativa da instituição que ela coordena e que conta com a parceria estratégica do Instituto Claro e parceria técnica da Roda Educativa.
“Os estudantes têm direito de avançar nos estudos e estar com seus pares, de interagir com pessoas da mesma idade”, enfatiza.
No Brasil, persiste a ideia equivocada de que a reprovação é uma ferramenta de aprendizado, e muitos responsabilizam apenas a/o estudante pelo desempenho, sem considerar os fatores externos. A reprovação é a porta de entrada para a distorção idade-série, quando as/os estudantes estão com dois anos ou mais de diferença em relação ao ano escolar em que deveriam estar. Trata-se de uma condição que muitas vezes leva ao abandono escolar. O impacto negativo disso não se dá apenas na vida acadêmica; a escola representa um espaço essencial de desenvolvimento, proteção social e segurança alimentar.
A este ciclo de reprovação, distorção idade-série e abandono, chamamos de cultura do fracasso escolar, que impõe um ciclo punitivo à/ao estudante, obrigando-a/o a repetir os mesmos conteúdos, muitas vezes com a/o mesma/o professora/or e nas mesmas condições com as quais não aprendeu.
Entre as/os estudantes que enfrentam essa realidade, há mais meninos que meninas, mais negras/os e indígenas que brancas/os, predominantemente, matriculadas/os em escolas públicas das regiões Norte e Nordeste, das periferias de grandes cidades, com uma alta proporção de estudantes com deficiência. “São meninos e meninos em maior vulnerabilidade social e que já sofrem com outras privações de direitos”, resume Erondina.
Educação como UTI: uma comparação marcante
Coordenadora do programa na Roda Educativa, Camila Tinoco destaca: “Se a educação fosse um hospital, os alunos com distorção idade-série seriam os pacientes da UTI. E é para a UTI que o hospital envia os melhores médicos, recursos e há o acompanhamento mais próximo. Estima-se que cerca de 4 milhões e meio de estudantes no Brasil estão nessa situação.”
Diversos fatores contribuem para esse atraso escolar: dificuldades de alfabetização (que se agravaram muito por causa da pandemia, mas já existiam bem antes dela) ou no aprendizado da matemática (em que o Brasil tem baixos índices de aprendizagens), problemas de saúde, ambiente escolar pouco estimulante, pressão por gerar renda para o orçamento familiar e falta de acesso regular à escola. Muitos ingressam tardiamente na escola e convivem por anos com a distorção idade-série.
Estratégia para enfrentar a cultura do fracasso escolar
Em 2018, o UNICEF criou a estratégia “Trajetórias de Sucesso Escolar”, um conjunto de recomendações que guiam a elaboração de políticas educacionais estaduais. A Roda Educativa, que é parceira da instituição, começou realizando um trabalho em Sergipe, estado que tinha o maior número de estudantes em situação de distorção idade-série e que, hoje, depois de participar das iniciativas, tem conseguido reverter esse quadro.
Além de Sergipe, a estratégia inspira programas no Acre, Amapá, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Distrito Federal. Nessas localidades, oferece apoio às Secretarias de Educação, promovendo formação e cursos para professoras/es e gestoras/es, além de webinários e seminários presenciais. Todos os materiais e conteúdos estão disponíveis para o público interessado no site da TSE.
O programa valoriza a bagagem cultural das/os estudantes e suas famílias e adota uma escuta ativa para entender suas trajetórias e as razões de suas reprovações, incentivando a realização de práticas pedagógicas que favoreçam a aprendizagem de todas/os, reconhecendo suas necessidades de aprendizagem, mas também seus potenciais.
As escolas envolvidas formam turmas reduzidas para estudantes com distorção idade-série e desenvolvem um planejamento pedagógico personalizado, que inclui o currículo priorizado. Durante um ano, essas/es estudantes constroem habilidades essenciais, de forma a alcançar seus pares etários e dar continuidade a sua trajetória escolar.
Formação das/os educadoras/es e inovação na sala de aula
Técnica da equipe da Secretaria de Educação do Amapá, Cley Riullen destaca a importância das formações para professoras/es, coordenadoras/es e gestoras/es escolares para a implementação do Programa Travessia, voltado para a garantia das aprendizagens na idade certa e parceiro da TSE. “Esse é um espaço de troca, onde discutimos como será a priorização escolar, quais habilidades serão trabalhadas, e incentivamos os professores a desenvolverem aulas inovadoras para motivar os alunos”, conta ela.
A metodologia da “Trajetórias de Sucesso Escolar” evita a repetição de conteúdo, focando em aulas centradas na/o estudante e em sua participação ativa. Ao considerar o que elas/eles já sabem e permitir que compartilhem suas produções com o grupo, o engajamento aumenta e as famílias voltam a acreditar no potencial dessas/es estudantes.
No Rio Grande do Norte, a técnica da Secretaria de Educação do Estado Isabela Cecilia Reis explica que as aulas são planejadas para atender às reais necessidades das/os estudantes, relacionando os conteúdos ao cotidiano delas/es e proporcionando uma visão mais sensível e individualizada. Segundo ela, as/os estudantes se sentem acolhidos e as famílias acompanham mais de perto a trajetória escolar, vendo a educação como um meio para realizar seus sonhos.
Histórias de transformação
São diversas as histórias de superação entre as/os participantes dos programas apoiados pela estratégia do UNICEF. Muitas/os estudantes com até quatro anos de atraso avançaram para o Ensino Médio e até para a universidade pública.
O caso de Ygor Gabriel Batista Pascoal, de 15 anos, é um exemplo de como a escola pode rever suas práticas para ajudar um estudante que não consolidou as aprendizagens na idade esperada a retomar seus estudos. Quando percebeu que ele não estava alfabetizado, a equipe da escola Poeta Garcia Rosa passou a fazer um acompanhamento individualizado que ofereceu as condições de que Ygor precisava para aprender a ler. A escola faz parte do Programa Sergipe na Idade Certa (ProSIC), do Governo estadual, e participa das formações oferecidas pela Roda Educativa, no contexto da TSE.
A então coordenadora pedagógica, Georgia Lins, aponta três pontos centrais no processo de acompanhamento do Ygor: “Sensibilidade do professor em não julgar, o suporte pedagógico e da gestão, para entender que às vezes você precisa reorganizar sua estrutura enquanto escola para poder atender àquele aluno; e aí vem a parceria com a família”.
Alcilene, de 14 anos, de Baraúna/RN, também não sabia ler e quando foi reprovada achou que a culpa era dela. Com o apoio do professor e da equipe da Escola Municipal Manoel de Barros, ela conseguiu superar essa defasagem em relação aos colegas de turma e fazer dois anos letivos em um só ano, o que vai permitir que ela entre no Ensino Médio na idade certa. “Eu vi meus professores me incentivando a aprender a ler e senti a vontade de ser que nem eles e ajudar outras pessoas a aprender a ler”, conta.
Os programas do Rio Grande do Norte e de Sergipe foram criados a partir da estratégia Trajetórias de Sucesso Escolar.