A divulgação do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) sempre causa um alvoroço no meio da educação e não foi diferente na semana passada, quando o Inep (Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais Anísio Teixeira) anunciou os resultados do Ideb 2023, o primeiro sem o efeito direto da pandemia.
Mas o que de fato essas notas, que se tornam a glória ou o terror dos gestores públicos, revelam sobre a educação? O que o Ideb não capta? E quais os riscos de resumirmos a discussão da qualidade da educação a um recorte?
Para compreender melhor essas e outras questões em torno do principal índice educacional do país, conversamos com a nossa diretora-presidente, Tereza Perez.
Confira abaixo a entrevista:
Roda: Tereza, no dia 13 de agosto, foi divulgado o Ideb 2023. O que você acha que a/o gestora/or de um município deve se preocupar em observar, para além de saber se a nota caiu ou subiu?
Tereza: Se eu fosse a gestora da Educação de um município, olharia a nota de cada escola e buscaria observar que pistas ela pode me dar sobre onde há maior necessidade de investimento em políticas intersetoriais, infraestrutura, formação. Há perguntas que são fundamentais de serem feitas e revisitadas: Quem são as pessoas que vivem naquela região? Quais são as condições do ambiente em que vivem? De que tipo de formação está precisando para aquela escola? Quais são as condições de infraestrutura? Normalmente as escolas mais periféricas, que atendem uma população numa situação de maior vulnerabilidade, estão com notas mais baixas. Esse desequilíbrio entre as notas das escolas precisa ser observado e é essencial investir em ações que beneficiem as demandas de quem mais precisa e adotar práticas com vistas à equidade. Nessa Olimpíada, a Rebeca Andrade [ginasta que se tornou a maior medalhista brasileira] nos ensinou que a competição dela não é com o outro, é sempre consigo mesma. Acho que isso vale para a educação: Como vou melhorar com as minhas condições? O outro que faz melhor é uma referência, porque, quando o outro faz melhor, eu sei que aquilo é possível de ser alcançado.
Então fica essa ideia de que a avaliação serve para que eu tenha uma autoavaliação, para que eu veja o que eu posso melhorar. É mais do que ficar me comparando aos outros.
Roda: Como uma/um gestora/or pode explicar o Ideb para as famílias? Deve convocar uma conversa sobre isso?
Tereza: É importante mostrar para as famílias todos os esforços que a Secretaria está fazendo no sentido de melhorar a qualidade da educação. A comunicação é fundamental. Vale também explicar o que é o Ideb, o que ele envolve, a que serve, e dar esse contexto de que ele é mais um indicador para a gestão e assumir um lugar com espaço para autocrítica e para o diálogo. É para ser uma conversa franca, ver o que que melhorou e o que ainda precisa melhorar. E aí acho que seria muito bacana se a escola desencadeasse o Ideb como uma possibilidade de autoanálise de cada escola e de envolver mais as famílias. Mostrar que a educação é a integração da escola com a família e a comunidade que vai produzir uma educação de qualidade. Não é só a escola sozinha.
Roda: Sabemos que a nota do Ideb é resultado de uma correlação entre fluxo (aprovação) e desempenho (notas de estudantes em Língua Portuguesa e Matemática nas provas do Saeb). Quais equívocos podem ser gerados na análise em função dessa composição?
Tereza: Quando ocorreu a pandemia, tivemos o contínuo curricular, que foi uma orientação para que houvesse maior aprovação. Então isso dá um desvio: a gente quer que todo mundo seja aprovado, só que a gente quer que todo mundo seja aprovado aprendendo. Então o problema da nota é que eu posso ter uma aprovação que não necessariamente corresponda a uma aprendizagem significativa, uma aprendizagem de fato. Então é uma tensão que a gente tem. Ao mesmo tempo em que nós temos que melhorar o fluxo, essa aprovação não pode ser descolada da aprendizagem. A política de contínuo curricular já terminou. Temos que garantir essa intensificação das aprendizagens, cuidar para que todas/os as/os estudantes aprendam.
Roda: O que fica fora desse recorte?
Tereza: O Ideb não contempla as crianças que estão fora da escola nem mede a progressão das/os alunas/os ao longo dos anos. Um novo índice precisaria introduzir a trajetória e a progressão das/os estudantes ao longo da educação básica. Tem muita gente fora da escola, e isso não entra no Ideb. A qualidade da prova também precisa ser melhorada. Estamos com uma prova muito antiquada, e temos hoje recursos tecnológicos para melhorar isso. Precisamos também avaliar a educação integral, que não é só do saber stricto sensu. Não é por desempenho em Língua Portuguesa e Matemática que se mede a educação.
Roda: Então podemos dizer que o Ideb é insuficiente para expressar a qualidade da educação? Para quais outros índices devemos olhar?
Tereza: Sim, o Ideb é insuficiente. Devemos olhar para outros índices, como o Ioeb (Índice de Oportunidades da Educação Brasileira), que está sob a gestão da Roda Educativa e que avalia a oportunidade gerada pela gestão pública para a melhoria das condições de educação, e outros que estão sendo propostos como o Indicador de Trajetórias Educacionais – iniciativa do Observatório da Fundação Itaú em parceria com os pesquisadores Chico Soares, Clarissa Guimarães Rodrigues, Izabel Costa da Fonseca e Maria Teresa Gonzaga Alves. Temos também os índices do IBGE que falam sobre questões de gênero, raça e indígenas.
Um índice sozinho nunca vai traduzir a qualidade da educação.
Roda: Você afirmou recentemente que, a depender de como usarmos a avaliação, podemos reduzir a educação a uma questão de desempenho e deixar de lado o seu papel de transformação social, de construção de sonhos e projetos. Pode falar mais disso?
Tereza: Empobrecemos demais o olhar sobre o desejo de educação. Nossos grandes nomes, como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire, sempre propuseram uma educação que seja transformadora, libertadora, em que as pessoas aprendam, se desenvolvam, se relacionem e se respeitem.
Mas a educação hoje se reduziu a uma medição de desempenho, e isso precisa ser resgatado: o desejo de uma educação emancipatória.
Roda: Sempre que sai o Ideb, vemos um interesse pela geração de rankings. Você acha que essa classificação ajuda gestoras/es, educadoras/es e tomadoras/es de decisões a planejar e implementar ações para melhorar a educação local?
Tereza: O ranking é uma bobagem. Ele serve só para saber que, se aquele melhorou, eu também posso melhorar. Mas o que temos visto é um treinamento excessivo para todo mundo ir bem na prova, o que é um desvio pernicioso da educação. Precisamos de mais investimento na participação, na formação, no debate, no diálogo, e não em tanta medição.
Roda: Um município com um Ideb considerado bom pode indicar caminhos para um outro município com Ideb baixo?
Tereza: Sim, agora precisa ver quais são as condições desse Ideb bom. Se ele reflete uma qualidade de educação ou se reflete apenas treinamento para provas.
Roda: Em relação à gestão, você já destacou o papel positivo do regime de colaboração entre estado e municípios na implementação de políticas públicas efetivas. Essa é uma das práticas que poderíamos considerar benéficas de forma geral? Há outras? Formação de professoras/es, gestão com participação social…
Tereza: O regime de colaboração, como ideal, é muito bom. Precisamos cuidar das pessoas e não da rede estadual ou municipal separadamente. No entanto, o que temos visto é que o regime de colaboração ainda precisa entrar na engrenagem. A implementação de políticas precisa ser diferenciada de acordo com as necessidades de cada região e é preciso um olhar sistêmico para integrar todas as ações.