O professor eleito Educador Nota 10, na mais recente edição do prêmio do Instituto Somos, investe na leitura e no afeto para desenvolver o trabalho com suas/seus estudantes. Foi a partir dessas bases que ele conseguiu repertoriar a sua turma com conhecimentos literários ao longo do ano e escutar as crianças para construir junto com elas o desenho de um projeto que integrou não só diferentes aprendizagens relacionadas à Língua Portuguesa, mas que também abarcaram a cultura local, o diálogo e até o uso da inteligência artificial.
Helder Guastti tem 37 anos e leciona para estudantes do 5º ano da EMEF Pedro Nolasco, em João Neiva/ES, município de 16 mil habitantes onde a Roda Educativa já atuou, no contexto de uma parceria com a Fundação Vale, nos anos 90.
Com o projeto “Como diz o outro”, Helder ficou em 1º lugar no eixo Inovação e Tecnologia e foi eleito o Educador do ano, dentre as/os primeiras/os colocadas/os de cada um dos três eixos do prêmio, que também incluem Sustentabilidade e Direitos Humanos.
O projeto envolveu as 21 crianças da turma do 5º ano A, entre maio e setembro de 2023, na escrita coletiva de um livro com contos populares e elementos do folclore. Ao longo do processo, a turma ampliou seu repertório literário, pesquisou, debateu e tomou decisões por maioria, ouviu a comunidade, e se envolveu profundamente na produção do livro em si – da organização editorial às ilustrações, criadas com o apoio de inteligência artificial. A culminância foi a leitura dos textos do livro em um sarau aberto à comunidade.
Foto: Vilarejo Fotografias
Helder conta que toda a estrutura do projeto se baseia no que ele aprendeu com os materiais da Roda Educativa, que orientam o planejamento e o desenvolvimento de projetos didáticos. Embora uma criança nos tempos em que a Fundação Vale e a Roda Educativa (então CEDAC) atuaram por lá, ele já acompanhava a mãe, Rogéria Guastti, nas formações e reuniões e vivia na Casa do Professor de João Neiva – espaço de formação de educadoras/es que fazia parte da estratégia do Programa Escola que Vale.
“As marcas ficaram muito profundas e estão presentes até os dias de hoje, acompanhei esse processo enquanto, digamos, um participante indireto, já que eu estava ali com elas [as educadoras]”, contou o educador, em entrevista ao Blog da Roda. “Os projetos que a gente desenvolve em João Neiva têm como base aqueles materiais do ciclo 1 e ciclo 2, que estão disponíveis no site do CEDAC [Roda]. A base estrutural do meu projeto, ‘Como diz o outro’, com o qual eu ganhei o prêmio, é desse material.”
O material produzido inicialmente no Escola que Vale foi revisado e ampliado com o apoio da Fundação Vale, para o projeto Trilhos da Alfabetização. Chamado Formação na Escola – 2ª Edição, ele está disponível para download gratuito aqui no site, assim como outras publicações da Roda.
Confira abaixo alguns trechos da entrevista*:
Roda: Pode fazer um resumo da sua trajetória como educador? A equipe da Roda Educativa teve uma influência na sua formação?
Helder: A minha mãe trabalhava na secretaria [de João Neiva], até na Casa do Professor, que era uma proposta do CEDAC [nome antigo da Roda Educativa]. Eu amava ir lá, porque tinha sempre muitos livros diferentes, muitos DVDs. Quando não estava na escola, eu estava lá com elas, lendo ou ajudando em alguma coisa. Minha mãe trabalhou até os nove meses da gestação, então eu já estava na escola antes de estar no mundo. E foi esse trabalho todo do CEDAC, que na época fazia um programa chamado Escola que Vale, que trouxe a Maura [Barbosa, coordenadora pedagógica que atua na instituição desde o seu início] para cá, e foi aí que surgiu a base estrutural de todas as práticas de João Neiva, as práticas inegociáveis que perduram até hoje.
As marcas ficaram muito profundas e estão presentes até os dias de hoje, acompanhei esse processo enquanto, digamos, um participante indireto, já que eu estava ali com elas [as educadoras]. E aí, hoje, na minha jornada, já enquanto docente mesmo, enquanto profissional, eu recorro muito aos materiais e às publicações do CEDAC, agora Roda Educativa. Os projetos que a gente desenvolve em João Neiva têm como base aqueles materiais do ciclo 1 e ciclo 2, que estão disponíveis no site do CEDAC. A base estrutural do meu projeto, “Como diz o outro”, com o qual eu ganhei o prêmio, é desse material.
A questão da escrita, da escrita com o professor como escriba, escrita em pares das crianças, todo esse procedimento que a gente utiliza é com base no CEDAC.
Roda: Então você queria ser educador desde criança?
Helder: Apesar de ter tido essa imersão, uma das poucas certezas que eu tinha enquanto crescia era que não seria professor, jurava que não seria, porque aqui é um município muito pequeno e me incomodava ver a minha mãe sendo chamada a cada lugar que ia na cidade, mas aí eu me vi em 2008 na escola, eu entrei como mediador de laboratório de informática, terminei o ano como secretário escolar. Quando eu me vi lá, me apaixonei. Por mais que a gente não deva trabalhar só por amor, porque não existe isso, amor não paga boleto, o amor faz muita diferença, e eu me vi apaixonado por esse universo da infância, que é o que me comove até hoje. Eu trago muito dessa trajetória afetiva que eu via na minha mãe, uma marca dela eram essas relações afetivas, e essa questão da responsabilidade social. Acredito que nós, enquanto educadores, temos um papel, para além do discurso, de tentar nos doar e fazer o máximo para efetivar mudanças positivas, eu tive excelentes professores, que trago em mim: a minha mãe, a Maura.
Também sou apaixonado por leitura, o meu trabalho tem duas bases centrais: a afetividade e a leitura literária, e eu tento unir as duas para efetivar meus planejamentos, desmembrar o que eu quero desenvolver com as crianças, sempre trazendo elas como protagonistas também.
Roda: Qual foi o papel da formação continuada para o seu desenvolvimento como educador?
Helder: A meu ver a formação continuada é fundamental para nós, docentes, costumo dizer que quando o professor pega o diploma, o estudo está apenas começando, porque ser educador demanda muita pesquisa e muito estudo, não é apenas sentar, pegar um caderno de planejamento, e botar páginas do livro didático.
Temos que entender o espaço escolar enquanto um espaço de formação continuada, nossos gestores, os nossos coordenadores pedagógicos, e a equipe escolar, o corpo docente como um todo, [poderem] se encontrar nesse espaço para se formar, coletivamente, pra efetivar esse diálogo; se não, as coisas não casam, você vai na formação da secretaria, aplica o que você viu na sua sala, mas com seus pares e seus colegas, que convivem com você ali, e habitam o mesmo espaço, não há esse diálogo.
Sou um lutador ferrenho para que as vozes dos professores sejam ouvidas, que sejam relevantes para os processos de formação; sem isso, vira palestra, e a gente não quer palestra, quer formação continuada. Só nos percursos formativos conseguimos desenvolver, ou aprimorar nossas habilidades e competências, com uma formação sólida, que vem com o diálogo, a escuta, a conversa, a reflexão, o debate, e com o entendimento de práticas, pensando em como vão chegar na nossa criança; sem isso não tem sentido o nosso trabalho.
Roda: Como surgiu o projeto “Como diz o outro”?
Helder: O projeto surgiu de uma maneira inesperada, muito poética. Eu trabalhei com as crianças o livro “Irmãs de Chuva”, da Gabriela Romeu, é um livro fantástico que traz muito de cultura popular, a questão da rima, um “livrão”! E a minha turma era “A” turma, acho que até por isso que eu me dispus a ler esse livro com as crianças. E aí a Gabriela promoveu um bate-papo on-line com elas, e nós estávamos falando do livro, e as crianças faziam muitos questionamentos. Não consigo lembrar se fui eu ou se foi uma delas, que soltou a frase “Como diz o Outro”, que é uma frase muito comum, quase um dito popular aqui em João Neiva. E a Gabriela ficou: “gente, mas quem é esse outro? Ele está aí?” Ela achava que o outro era literalmente alguém que estava ali, e eu e as crianças tentando explicar que é todo mundo que está aqui, é o povo de João Neiva. Aí na hora ela falou: “então por que vocês não fazem um resgate dessas tradições populares de João Neiva?” E as crianças piraram. Aí eu falei: “fechou, vamos estruturar isso aí, o que é que a gente vai querer?” e deixei o outro projeto, que eu já tinha estruturado, de lado.
O recorte foi a escolha das crianças, só que a nossa ideia inicial era um resgate apenas de contos populares, coisas da tradição oral, e elas queriam que o produto final fosse um livro de escrita de próprio punho. Conforme fomos passando o período de ampliação do repertório [uma das etapas na estrutura do projeto didático], de leituras, de mediação de leitura, ora feita por mim, ora por elas, ora pelas famílias que foram muito parceiras – este fator de a comunidade ir à escola é, aliás, outro motivo do sucesso do projeto.
Aí, por conta do trabalho do Ricardo Azevedo, elas trouxeram o “Armazém do Folclore”. Queriam que o nosso livro, além das produções escritas por elas, tivesse quadrinhas populares, porque o Ricardo tem o costume de encerrar os seus contos com algumas quadrinhas, versinhos, ditados populares, trava-línguas.
Roda: E por que você acha que funcionou tão bem?
Helder: A turma tinha gás de aprender, isso fazia com que eu quisesse todo dia fazer mais e melhor por conta deles, eu tinha sempre que chegar com coisa além. Uma outra virada de chave foi a questão da inteligência artificial. Um dia, uma criança, o Lucas, chegou com a notícia de que um grupo de estudantes de uma escola do Rio de Janeiro tinha feito montagens pornográficas, usando a inteligência artificial com o rosto de colegas de classe, meninas. As nossas mediações e leituras têm muita participação e interferência das crianças, e aí entramos num debate sobre os maus usos, o porquê que o ser humano, tendo uma ferramenta tecnológica tão incrível e útil, vai querer prejudicar o outro, e aí elas falaram: “por que a gente não tenta usar para produzir as nossas ilustrações?” E eu já tinha um certo conhecimento, e aí eu fui pesquisar, fui me aprofundar como que nós conseguiríamos trazer isso mesmo de uma maneira útil, e a todo momento, eu queria que o livro, o projeto, fosse a cara das crianças, não tinha que ser o projeto do professor Helder, tinha que ser o projeto do quinto ano A.
Então, tudo partiu delas, eu acho que é isso que mais me emociona, poder dar visibilidade a um trabalho que foi delas. Eu mediei, acho que o professor tem que mediar, costurar as ideias, encaminhar o trabalho. E aí nós tivemos que fazer um outro processo nesse momento, de ressignificar todos os procedimentos de escrita e leitura que a gente tinha feito até então no projeto. No começo as crianças acharam que era copiar e colar na plataforma [de inteligência artificial] e ia vir uma ilustração, e não era assim, ou é muito literal, ou ela não entende. Então tive que trabalhar com elas os procedimentos de compreenderem uma maneira que conseguiriam pegar os contos produzidos e transformar aquilo numa forma de comando que a plataforma compreendesse e ainda assim tivesse a cara do que elas queriam.
Esse processo foi todo democrático também, eu as dividia em grupos, e cada grupo fazia algumas sugestões, e era feita a votação. Foi um trabalho também com a questão de escuta, de valorizar o outro, um grande diferencial no projeto, e no fim, nós encerramos com o sarau, que foi a coisa mais linda, com a família, a comunidade, uma choradeira das mães, porque foi um trabalho que envolveu realmente todo mundo, nós fomos à rua, fazer pesquisa, o que pra mim foi dos ápices do projeto, as crianças interagindo com pessoas da terceira idade, com idosos, fazendo pesquisa, se eles tinham memórias afetivas de alguém contando história.
Roda: E como é que foi a reação das crianças manuseando esse livro, olhando para esse produto final de autoria delas?
Helder: Foi muito emocionante, porque tudo era com a participação delas. Eu colocava o projetor, [perguntava] ‘onde a gente vai encaixar isso? Vamos fazer o sumário?’ Porque a gente tem a questão do caderno de texto também, que veio dessa época da Maura. Então, as crianças têm uma familiaridade com isso, com a estrutura de sumário. Elas já haviam desenvolvido comportamentos dos leitores, tinham se apropriado da ficha catalográfica. Então a gente tinha que fazer uma ficha catalográfica com a cara da turma. Quiseram colocar epígrafe. Cada criança recebeu o seu exemplar.
Roda: O projeto reúne elementos hoje considerados centrais e, ao mesmo tempo, desafiantes do planejamento pedagógico: a escuta, trabalho coletivo, conexão com a cultura local, envolvimento das famílias. Quais aprendizagens você destacaria que ele possibilitou?
Helder: Creio que das aprendizagens significativas que vieram com o projeto, há todas aquelas que eu tinha idealizado a respeito dos procedimentos de leitura e escrita, porque era o foco central mesmo. Além da oralidade, uma característica que essa turma desenvolveu muito.
Outro ponto muito marcante de aprendizagem é a questão do patrimônio cultural, entender-se não apenas como alguém que consome cultura, mas de colocá-las mesmo como produtoras de cultura, que é quando tem essa virada de chave. Eu lembro quando a gente estava no processo de diagramar, de formatar o livro, do encantamento que eu via no olhar delas, porque até a digitação dos textos que entraram foi feita por elas.
Também vejo aprendizagens no sentido de um intercâmbio intergeracional, porque uma das propostas de produção deveria envolver os membros da família.
E a questão de ressignificar os instrumentos tecnológicos. No caso aqui a inteligência artificial usada para desenvolver as ilustrações, mas com uma ressignificação do seu uso, para entender que nós, enquanto profissionais de educação, temos a tendência de migrar para crítica pela crítica, quase que demonizar tudo. E não vou demonizar a inteligência artificial na minha sala.
Para mim, enquanto professor, foi um reencontro com o porquê de eu ser tão apaixonado pela educação e pela leitura, porque esse projeto era tudo que eu sempre sonhei.
Roda: O projeto faz um uso muito assertivo da inteligência artificial, o que essa escolha possibilitou de aprendizagens e de desafios para você e seus alunos?
Helder: Na escola pública, o desafio básico é o de recursos mesmo, que é complicado. Eu levava notebook meu, celular meu, pegava emprestado um da escola, e a gente tem uma questão aqui na rede de Wi-Fi que é limitada. É até uma ironia. Nós estamos nessa situação trazendo um troféu de inovação e tecnologia. Então, o professor, quando quer, consegue contornar tudo. O desafio foi a questão de recurso mesmo, mas a minha diretora é muito parceira, ela vai até o infinito para ajudar. Isso também é um grande diferencial, não é alguém que vai cercear ali o trabalho. Eu não vejo aquele processo de ressignificar a escrita [no uso da IA], todo esse movimento que a gente teve que fazer condensar, quase criar um prompt de comando, como desafio. Para mim foi incrível, fez parte do aprendizado do projeto. Outro desafio foi a dúvida que nós tínhamos se conseguiríamos fazer uma impressão de qualidade, mas isso foi resolvido também entre a gente.
Roda: Qual foi para você o significado de receber esse prêmio?
Helder: Para mim, é a valorização de uma vida, desde que eu me compreendi enquanto educador. Eu acredito que todos nós que atuamos com crianças no espaço escolar, nós precisamos nos compreender nesse papel de educador. E eu acompanho o Prêmio há muitos anos. Foi um projeto que me pegou muito, me emocionou muito, me instigava, essa turma mexeu muito comigo, todas as ações e as etapas, os desdobramentos do projeto, e um projeto que é de autoria das crianças, eu fui apenas o mediador dos processos.
Enquanto eu fazia, eu não tinha nem pensado em prêmio, porque não tem sentido você fazer um trabalho pensando nisso, mas ele foi tão potente que me deu esse anseio de compartilhar com outras pessoas. Então, para mim, é a realização de uma vida e poder dar visibilidade mesmo. Eu não gosto de falar em “dar voz” porque voz todos têm. É dar vez e a visibilidade, uma escuta, que é o que eu prezo e priorizo tanto no meu trabalho, uma escuta atenta ao que as crianças têm a dizer. Porque desde a escolha do recorte, do que faríamos, tudo partiu da voz das crianças. Então, receber o prêmio nessa condição é algo que me comove profundamente. Eu falo que meu coração está transbordando orgulho, alegria e está transcendendo em poesia, porque é isso. É realização sem tamanho.
*A entrevista com o Helder foi feita por vídeo; as falas reproduzidas aqui sofreram edições e adaptações mínimas a fim de torná-las mais concisas para o formato escrito.
Foto principal: Divulgação Prêmio Educador Nota 10