Desde o início de 2019, o dicionário da Escola Municipal de Ensino Fundamental Coronel Ary Gomes roda de mão em mão, entre um grupo de funcionários da escola. O interesse vai além do desejo desses profissionais de ampliar o próprio repertório, é que no início do ano eles passaram a atuar como voluntários do programa Myra – Juntos pela Leitura, e querem ampliar também as suas possibilidades de contribuir com os alunos nas sessões de leitura semanais que realizam.
O rodízio do dicionário ajuda esses profissionais a procurar o significado de algumas palavras que despertam dúvidas nos alunos selecionados para participar do programa, uma iniciativa da Fundação SM que conta com o apoio técnico da Comunidade Educativa CEDAC e tem como objetivo contribuir para melhorar cada vez mais o desempenho leitor de estudantes. Em 2019, o Myra está em três escolas da rede municipal (EMEFs Ary Gomes, Cacilda Becker e Amorim Lima) e uma da rede estadual (EE Alfredo Paulino) de São Paulo.
No total, aproximadamente 105 alunos participam de sessões semanais de leitura, com duração de uma hora. Para cada estudante, há um voluntário com a missão de mediar este momento e se tornar um tutor da aproximação da criança com os livros e a leitura. Os realizadores do Myra captam voluntários com uma chamada pública realizada anualmente. Os perfis de inscritos são bastante diversos e não necessariamente pertencem à comunidade onde está inserida a escola. Localizada na Vila Maria, zona norte de São Paulo, a Ary Gomes inovou na estratégia de seleção de voluntários ao propor que as vagas não preenchidas ficassem com os próprios funcionários da comunidade escolar. São 30 alunos que participam do programa, atendidos por 27 voluntários — seis deles são funcionários da escola.
Todos os voluntários participam de formações com a CE CEDAC e recebem orientações da equipe pedagógica ao longo de todo o ano.
Responsabilidade de todos
Este é o segundo ano da Ary Gomes no Myra e a diretora da escola, Cristiane Albuquerque, diz que o fato de ter aumentado o número de alunos selecionados para o Myra em 2019 colocou o desafio de conseguir a quantidade de voluntários necessários para atuar como tutores. “Ao final do ano, os números mostraram avanços de aprendizagem, mas durante o processo vimos como as crianças eram acolhidas, com carinho e amizade, uma relação que se refletia na sala de aula. Para a nossa realidade, foi um avanço”, afirma Cristiane. Com o aumento do interesse, seria um desafio ter voluntários neste novo ciclo. “Pensei: por que não ofereço as vagas para quem está aqui dentro?”.
A diretora então reuniu seus funcionários, de secretários administrativos a agentes escolares, e apresentou a ideia. O retorno foi positivo. “É uma maneira de atender mais alunos e envolver os funcionários no processo de aprendizagem, que é uma responsabilidade de todos.”
A escolha por funcionários-voluntários reflete um dos pilares do Myra: o conceito de cidade educadora. Apostar em pessoas não diretamente vinculadas à educação formal para mediar as sessões reforça o conhecido provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”.
No programa, é também valorizada a criação de vínculo entre tutor e aluno, que ajuda as crianças a encontrarem prazer na leitura e a enfrentarem, com apoio, possíveis dificuldades na compreensão do que leem. Os voluntários passam por um processo de formação e têm liberdade para escolher quais livros serão lidos com as crianças, que também opinam sobre seus temas prediletos e sugerem títulos a serem compartilhados durante as sessões.
Do administrativo para o pedagógico
“Tenho um pouco de dificuldade de ler”, admite Renata, uma das alunas do 5º ano que participam do Myra, segurando o livro “Anabela, Bela e Clarabela”, de Walther Moreira Santos — que ela mesmo escolheu em uma visita à sala de leitura da escola. “Algumas vezes demoro pra entender o que está escrito. Antes, a professora me pedia pra ler e eu não conseguia.” Com a ajuda de Flávia Lemes, funcionária da secretaria do Ary Gomes há cinco anos, a menina passou a avançar no seu desenvolvimento como leitora.
“No começo estava receosa, pois é uma atividade que não tem nada a ver com o que faço no dia-a-dia, que é completamente administrativo”, conta Flávia, que classificou como “maravilhosa” a oportunidade de participar pela primeira vez de um projeto pedagógico. “Despertar o prazer da leitura vai ter influência pelo resto da vida deles. Quando estamos no lado educativo, muda-se o olhar para todas as crianças, toda a escola. A Renata ganha, eu ganho e as outras crianças que não estão envolvidas também ganham, pois mudamos o olhar para elas também.”
Assim como Flávia, Ivo Pedro é funcionário da área administrativa da escola. Para ele, o formato das sessões — um voluntário e um aluno — facilita o acompanhamento exclusivo que muitas vezes um docente não consegue dar. “Mesmo não sendo professor, a minha experiência de vida tem ajudado”, acredita. “O aluno se sente mais à vontade conversando comigo, dando opiniões e sugestões para o andamento da sessão.” Ivo Pedro utiliza gibis, poemas e letras de funk — estilo musical apreciado pelo seu aluno — para se aproximar e incentivar o interesse da criança pela leitura.
“Aprendo mais com ela do que ela comigo”
Há dois anos como auxiliar técnica de educação na Ary Gomes, Tatiana de Barros cita o vínculo criado com os alunos como um dos pontos positivos do Myra. “Quando fala que é o horário de leitura, eles se transformam. É um momento diferente do que estão acostumados”, lembra Tatiana, que tem alternado jogos e leitura em sua mediação. Foi com a dupla de outra inspetora, Edileide Barbosa, que se juntaram para uma partida de Perfil, jogo de tabuleiro que também é utilizado pelos voluntários Myra, uma vez que contém cartelas com textos para leitura.
“Como sou uma inspetora muito brava, achei que a criança poderia ficar com medo de participar comigo”, brinca Edileide. Sobre a aluna que está ajudando a ler, confessa que não a conhecia antes das mediações. “Por ser muito quieta, nunca tinha percebido ela aqui antes. Agora, estamos nos aproximando, a cada conversa ela se abre mais.”
O caso de Edileide ilustra bem outra faceta do Myra: adquirir conhecimento é mais efetivo quando é uma via de mão dupla, onde o aprender e o ensinar se misturam organicamente. “Temos gostos parecidos, mas ela me traz coisas que não são do meu mundo”, conta a inspetora. “Aprendo mais com ela do que ela comigo. Ela é expansiva, propõe os temas e vou atrás. Tivemos debates impressionantes, um deles a respeito da Malala [Yousafzai, ativista paquistanesa que defende os direitos das mulheres e da educação], a quem não conhecia.”
Participação das famílias
No final do ano, quando a tutoria terminar, será realizada uma avaliação para analisar os resultados do acompanhamento personalizado. Para a diretora Cristiane Albuquerque, o Myra pode ser considerado um ganho não apenas para os alunos, mas também para os funcionários. “Ao participarem do pedagógico, eles sentem que estão ajudando as crianças. E na relação entre os próprios funcionários também foi positivo, pois fazem trocas de livros e se organizam com autonomia.”
A partir deste ano, a escola conta com uma nova sala de leitura, e o número de livros emprestados tem crescido. “As crianças estão se contaminando pela leitura”, comemora Cristiane. “Algumas querem levar o livro pra casa, se apropriando e criando o hábito da leitura.”
A diretora aponta que a comunidade na qual a escola está inserida é difícil de ser tocada pela educação formal. Este ano, no entanto, a participação das famílias está sendo maior e melhor. “Tínhamos uma situação bem complicada: um aluno que não interagia com os outros. Após participar do Myra, hoje ele participa da academia estudantil de letras. Seus dois primos também estão no Myra e a avó veio perguntar se os livros podiam mesmo ir e vir. É um sinal de que as famílias também sentem a responsabilidade de ler junto com a criança.”
Na Ary Gomes, o Myra honra o seu nome (que em tupi significa grupo de pessoas e coletividade) e reúne a comunidade em torno de um só objetivo. O voluntário se compromete com o aluno, a escola dá suporte às demandas que forem surgindo e a família, sempre que possível, se soma a essa força-tarefa em prol da leitura.
O Myra é uma adaptação do programa Lecxit, uma experiência bem-sucedida de voluntariado para a promoção da leitura realizada em Barcelona e é resultado de uma parceria entre a Obra Social “La Caixa”, a secretaria de educação local e a Fundação Jaume Bofill.
Qualquer pessoa interessada pode acessar os materiais que são disponibilizados aos voluntários, à escola, aos alunos e às famílias. Neles, são compartilhadas dicas de como criar um ambiente favorável à leitura, sugestões de livros para os tutores lerem com as crianças, formas de guiar essa leitura, entre outros conteúdos.