contraste contraste
instagram facebook linkedin youtube email
contato como apoiar
Foto de Ana Lima, uma mulher de pele branca e cabelos grisalhos na altura do queixo, com um microfone na mão na frente de um púlpito
29/05/2024

Analfabetismo funcional: desafio esquecido, mas longe de superado

Foto de Ana Lima, uma mulher de pele branca e cabelos grisalhos na altura do queixo, com um microfone na mão na frente de um púlpito

O que é alfabetismo funcional e como ele nos ajuda a entender a situação dos brasileiros que não dominam as habilidades de leitura e escrita exigidas no uso social? O Blog da Roda conversou com a economista Ana Lima, idealizadora do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) e parceira da Roda Educativa na análise dos resultados do Ioeb (Índice de Oportunidades da Educação Brasileira).

Na entrevista, Ana lembra que a falta de proficiência na língua escrita impacta não apenas o indivíduo, mas também sua família, a comunidade e a sociedade como um todo e enfatiza a necessidade de melhorar os índices de alfabetismo, por meio de políticas públicas de educação efetivas e do engajamento da sociedade civil. “O desafio é absorver rapidamente uma grande quantidade de pessoas com uma fragilidade histórica construída ao longo de séculos, em um contexto em que o uso dessas habilidades é essencial”, alerta.

Dados divulgados pelo IBGE neste mês, com base no Censo de 2022, apontam que a taxa de analfabetismo caiu de 9,6% para 7,0% em 12 anos, mas desigualdades persistem. O resultado corrobora os últimos resultados do Inaf, aferido em 2018, que já mostravam que, se de um lado havia uma melhora nos níveis mais baixos, o índice de proficiência permanecia estagnado em torno de 12%, com uma concentração dos avanços nos níveis elementar e intermediário – etapas deveriam ser apenas de transição.

Acompanhe abaixo essa conversa que nos ofereceu insights valiosos sobre o alfabetismo funcional no Brasil:

Roda: Como você descreveria, de forma geral, o conceito de alfabetismo funcional e sua importância na sociedade contemporânea?

Ana Lima: O alfabetismo funcional abrange a capacidade do indivíduo em compreender, analisar, usar e se desenvolver com leitura, escrita e matemática em várias situações da vida cotidiana, desde o ambiente doméstico até o trabalho, passando pela escola e pela comunidade. Vai além do simples ato de ler e escrever; envolve também habilidades como interpretação de textos, aplicação de conhecimentos em situações práticas e capacidade de tomar decisões embasadas em informações escritas. Estas competências são fundamentais para uma participação efetiva na sociedade letrada. O alfabetismo funcional é avaliado em cinco níveis, sendo os dois primeiros indicativos de analfabetismo funcional, enquanto os três restantes refletem diferentes graus de proficiência em leitura, escrita e matemática, necessários para se inserir e prosperar em uma sociedade letrada e em diversos contextos do cotidiano. A falta de domínio de tais habilidades afeta diversos aspectos da vida, no trabalho, no consumo até a participação cívica e o bem-estar financeiro.

Roda: Quais os principais desafios enfrentados pelo Brasil em relação ao alfabetismo funcional?

Ana Lima: Como mostram os dados recém-divulgados pelo IBGE, a proporção de brasileiras e brasileiros considerados analfabetos absolutos ainda é de 7%, o que corresponde a mais de 11 milhões pessoas. Essa é mais uma triste evidência das consequências do tardio acesso universal à educação, o que nos coloca em uma posição consideravelmente atrasada em cerca de cem anos quando nos comparamos a países desenvolvidos e até mesmo em relação a muitos de nossos vizinhos latino-americanos, que atingiram patamares educacionais equivalentes àqueles em que estamos hoje 10 a 15 anos antes do Brasil. Para superar essa defasagem foi necessário um enorme esforço para a integração dessas pessoas ao sistema educacional em um curto espaço de tempo.

Roda: De que forma esses desafios impactam diretamente na integração e desempenho no ambiente escolar e, consequentemente, em suas vidas cotidianas?

Ana Lima: A inserção dessas pessoas no ambiente escolar se torna ainda mais desafiadora devido aos contextos familiares e comunitários em que vivem, nos quais o uso da leitura e da escrita é, historicamente, limitado. Muitos desses indivíduos pertencem a famílias onde o analfabetismo era comum, e a necessidade e prática da leitura e escrita eram escassas. Portanto, o desafio é absorver rapidamente uma grande quantidade de pessoas com uma fragilidade histórica construída ao longo de séculos, em um contexto em que o uso dessas habilidades é essencial. A escolaridade é o fator mais importante no desenvolvimento das habilidades de letramento e numeramento, pois é no espaço escolar que se tem um processo sistemático de desenvolvimento de competências que serão mobilizadas nos mais diversos campos da vida adulta. É fundamental que a escola promova um processo contínuo de letramento e numeramento ao longo de todas as etapas da educação básica, capaz de assegurar o domínio de múltiplas linguagens em diferentes campos do conhecimento: linguagens específicas da história e da geografia, da literatura e da arte, da matemática, das ciências e das tecnologias precisam ser aprendidas, desenvolvidas e consolidadas na escola, assegurando assim um grau de alfabetismo pleno, capaz de continuar gerando aprendizagens ao longo da vida.

Roda: O Inaf tem sido uma referência importante no monitoramento do nível de alfabetismo funcional no Brasil. Como você avalia a evolução deste indicador ao longo dos anos?

Ana Lima: Nos últimos 20 anos, observamos uma queda significativa no analfabetismo funcional no Brasil, passando de 39% para 29%. Esse dado, coletado ao longo de duas décadas, reflete tanto avanços como desafios persistentes. Por um lado, é motivo de comemoração ver essa proporção diminuir, o que significa que milhões de brasileiros saíram do analfabetismo funcional nesse período. No entanto, ao analisar mais de perto esses números, percebemos que a situação ainda exige atenção: há uma parcela específica da população adulta nos dois primeiros níveis de alfabetismo funcional, o que representa 29% do total. Isso significa que cerca de 3 em cada 10 adultos brasileiros não dominam, nem mesmo as habilidades básicas de leitura, escrita e matemática para exigidas na sociedade contemporânea.

Roda: Como você interpreta esses dados?

Ana Lima: Esses dados evidenciam que, embora tenhamos progredido, ainda estamos longe de ser um país com uma população funcionalmente alfabetizada. Enquanto celebramos as conquistas alcançadas, é importante considerarmos a importância dos investimentos contínuos em educação e políticas eficazes de promoção do letramento. Os baixos níveis de alfabetismo de nossa população jovem e adulta constituem-se em entraves importantes para o desenvolvimento das empresas brasileiras, afetando sua produtividade, competitividade e capacidade de inovação; fragilizam os cuidados com a saúde, gerando ônus para indivíduos e para a sociedade; limitam a compreensão de contextos na tomada de decisões nos mais diferentes âmbitos.

É ainda fundamental considerar que os desafios são ainda maiores quando consideradas as desigualdades socioeconômicas que impactam o acesso à educação de qualidade, agravando as desigualdades estruturais de nossa sociedade. Daí a necessidade de implementar estratégias que atendam às demandas específicas de grupos em situação de vulnerabilidade pois somente abordando essas questões de maneira abrangente e sistêmica, poderemos garantir que todos os brasileiros tenham a oportunidade de desenvolver, plenamente, suas habilidades de leitura, escrita e matemática, contribuindo para uma sociedade mais inclusiva, justa e próspera.

Roda: Qual a diferença entre o Inaf e o Ioeb (Índice de Oportunidades da Educação Brasileira) e como esses indicadores complementam a avaliação educacional de um país ou região?

Ana Lima: O Inaf avalia habilidades individuais de leitura, escrita e matemática, enquanto o Ioeb analisa as oportunidades de educação disponíveis em um determinado município. Ambos os indicadores são complementares, pois fornecem uma visão abrangente do panorama educacional, combinando avaliações de habilidades individuais com análises de oportunidades educacionais olhando não apenas para a escola mas também para aqueles que estão fora dela.

Roda: De que maneira você enxerga o papel das organizações da sociedade civil e do terceiro setor na promoção do alfabetismo funcional e na melhoria da educação em geral?

Ana Lima: Embora o papel do governo seja importante, não podemos, simplesmente, delegar apenas a ele toda a responsabilidade. A sociedade civil tem o papel essencial de defesa dos direitos, cobrar políticas públicas adequadas e monitorar seu impacto. É necessário um engajamento contínuo na discussão e avaliação das políticas educacionais para garantir que atendam às necessidades da população. Um exemplo inspirador é a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), uma iniciativa impulsionada pela sociedade civil que reformulou o financiamento da educação básica no Brasil. Esse caso exemplifica como a sociedade pode influenciar positivamente as políticas governamentais e promover mudanças efetivas.

Roda: Quais são suas perspectivas para o alfabetismo funcional no Brasil nas próximas décadas?

Ana Lima: Prefiro ser otimista quanto às possibilidades de superar esses desafios, apesar das dificuldades que enfrentamos. Acredito que resolver o problema do analfabetismo funcional requer um esforço coletivo da sociedade, conforme comentado anteriormente. Isso inclui investimentos na educação desde a primeira infância, formação continuada de professores, políticas públicas que promovam a igualdade de acesso à educação, programas de incentivo à leitura e à escrita, além de ações de conscientização sobre a importância do letramento em todas as faixas etárias. O uso da tecnologia também pode desempenhar um papel significativo no desenvolvimento do alfabetismo funcional, desde que seja utilizada de forma acessível e inclusiva. Recursos, como aplicativos educacionais, plataformas online de aprendizagem e ferramentas de tradução, podem ampliar o acesso ao conhecimento e oferecer experiências de aprendizagem personalizadas, adaptadas às necessidades individuais dos alunos. Felizmente, temos exemplos bem sucedidos de políticas no Brasil que conseguiram mudar a realidade. Portanto, devemos buscar esses exemplos e construir, coletivamente, uma sociedade que valorize a educação, a aprendizagem e o conhecimento como pilares para um futuro melhor.

Foto: Compondo Ideias

conteúdos relacionados

Este site usa cookies para melhorar sua experiência.